24/11/19
por Marcos Mantovani




Bifurcações

“[...] trilhas de intermináveis bifurcações que uma pessoa precisa enfrentar quando caminha pela vida.” (AUSTER, 2018, p. 809)
É minha mãe na imagem. 22 anos. Nenhum filho ou filha ainda, nenhum marido. Sua fisionomia moça e seu olhar sereno me sensibilizam de um jeito imprevisto. Enquanto estudo sua foto 3x4, me flagro a percebê-la não só como mãe, não só como alfabetizadora das minhas compreensões. Percebo-a hoje também como amiga de travessia-vida, amiga de futuro-dúvida. E nossas dúvidas, porque as temos bem demarcadas em 2019, nossas dúvidas fazem com que nos reconheçamos aliados para a nova realidade doméstica que se impôs a ela nos últimos tempos.

 metatextualidade

As limitações textuais. Releio o parágrafo anterior e noto que seria impossível escrevê-lo com isenção, impessoalizando-o. Diferente do que fiz no arranjo das cinco matérias anteriores, mexo agora na voz narrativa, substituo de repente a terceira pessoa pela primeira. E já não sei se posso chamar este texto de matéria. Não sei se, em virtude da dicção colada à pessoalidade, me expresso com o distanciamento e a clareza que se exigem de um material jornalístico. Me pego neste momento hesitando tanto na forma quanto no conteúdo. Hesito em falar sobre minha mãe.  

destinos, chances

Embaixo do título que dei para esta suposta matéria, como frase de apoio, há um fragmento do romance 4321, de Paul Auster — obra finalista do Man Booker Prize 2017. O livro trata das bifurcações (norte-americanas ou brasileiras) que existem nas trajetórias pessoais de todos nós. Paul Auster oferece quatro destinos possíveis ao mesmo personagem, Archie Ferguson. “Imaginar como as coisas podiam ser diferentes.” (p.55)

Eu olho para a fotografia da minha futura mãe, aos 22 anos dela, e sem querer visualizo destinos alternativos para seu caminho, para sua biografia. Se ela fosse a personagem central do livro 4321, quais opções de caminhada lhe seriam oferecidas? Outra cidade? Outros filhos? Se em Veranópolis a ficção tivesse tomado as rédeas do real e colocado minha mãe à mercê da literatura de Paul Auster, será que ele a teria conduzido para longe de mim e da minha irmã, para longe da nossa chance de nascer?

maio de 68

Na fotografia da minha mãe, além da atmosfera calma e meio hippie, o que chama minha atenção é a data estampada na parte inferior, o maio de 68 — simplesmente o mês mais importante do século XX. O mês decisivo. Se os desdobramentos que começaram durante aqueles trinta dias não tivessem acontecido, a consciência cidadã como a conhecemos hoje estaria mais despreparada, inexistiria em nós uma fagulha contestatória pronta para flamejar.

Em maio de 68, a calmaria de Veranópolis não tinha nada a ver com a impetuosidade que se via em Paris. Minha mãe não participou, na Champs-Élysées, das passeatas estudantis que exigiram o fim das posturas conservadoras, o fim do arcaísmo, o fim das negligências sociais e humanas. Ela não esteve lá. Mas, me valendo aqui da lógica literária de Paul Auster, eu observo a imagem jovem da minha mãe e a posiciono com os braços erguidos no maio de 68 parisiense. Vejo pelas ruas os seus cabelos soltos, os seus olhos insubmissos. Vejo bifurcações.

autoimagem, edição

No instante em que eu comento algo sobre sua foto 3x4, me surpreendo que minha mãe rebata que na sua juventude ninguém jamais lhe disse que ela era bonita, nem mesmo meu pai — condicionado às regionalidades mais ou menos formais do interior gaúcho nas décadas de 60 e 70. As pessoas não verbalizavam os encantos alheios. 

“Eu achava que era feia”, ela me diz agora e fica à espera de uma restituição, de um ressarcimento elogioso sobre a beleza dos seus 22 anos. Então eu lhe ofereço as palavras atrasadas e, desse modo, que interessante, acabo editando a autopercepção da minha mãe, acabo editando o modo como ela interpreta a sua autoimagem. Uma bifurcação retroativa.


AUSTER, Paul. 4321. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.


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